Poucos jogos independentes conseguem capturar o espírito de um lugar e de uma época com tanta sensibilidade quanto despelote. Indicado ao IGF 2025 nas categorias Nuovo e Grande Prêmio, o game convida o jogador a explorar as ruas de Quito, Equador, em 2001, pouco antes da histórica classificação do país para sua primeira Copa do Mundo. Tudo isso através do olhar — e dos dribles — de uma criança de oito anos. Mais do que futebol, o jogo é sobre o que acontece ao redor dele: memórias, sons, vozes e paisagens que contam a história de um povo em um momento delicado.
Um jogo nascido da saudade e da vivência
O responsável por dar vida a esse projeto é Julián Cordero, designer e desenvolvedor principal do despelote. Ao lado de Sebastián Valbuena (arte e música), Gabe Cuzzillo (produção) e Ian Berman (design de som), Julián construiu uma experiência sensível e cheia de camadas. Formado pelo NYU Game Center, ele começou o projeto como seu trabalho de conclusão de curso — há seis anos. Desde então, o jogo amadureceu com apoio de diferentes fontes e parceiros, mantendo sempre o propósito original: revisitar o futebol da infância.
A ideia surgiu do contraste vivido por Julián ao sair do Equador, onde jogava em parques e ruas, e se mudar para Nova York, onde se afastou do esporte. despelote nasce dessa lacuna e da vontade de representar uma vivência que grandes títulos como FIFA não contemplam: o futebol de verdade, jogado entre amigos, com bolas gastas e cenários comuns.
Um futebol sem estádio, mas cheio de vida
Em vez de focar no esporte competitivo, despelote se volta para o universo que o cerca. O jogador controla uma criança que anda por Quito chutando uma bola, interagindo com pessoas, ambientes e situações cotidianas. Não há placares, times nem torcidas organizadas. Há vida. O ano é 2001, e o Equador, ainda se recuperando de uma forte crise econômica, deposita sua esperança na seleção nacional. Essa tensão — e esse sonho coletivo — permeiam o ambiente do jogo.
A memória de Julián sobre essa época é nebulosa. Por isso, o time recorreu a amigos e familiares para reconstituir os diálogos. As falas não foram roteirizadas, mas improvisadas por pessoas que viveram o momento e relembraram suas histórias com base em situações propostas. Uma conversa de um casal em piquenique, por exemplo, foi inspirada em uma relação real — e você, como criança, pode usar o suco deles como alvo da sua bola. Sim, o caos é parte do charme.
A bola como guia da experiência
O elemento central da mecânica de despelote é a bola. Simples e imperfeita, ela está sempre no primeiro plano. Diferente de jogos em que o controle é absoluto, aqui a bola é instável, escorrega, rebate, desvia. E é isso que a torna crível. O jogador precisa aprender a lidar com ela, a prever seu comportamento, a se adaptar.
Esse realismo tátil cria uma conexão profunda entre o jogador e o mundo. Ao caminhar com a bola pelos pés, os sons da cidade — vozes, músicas, buzinas — entram sutilmente. A experiência de explorar Quito torna-se sensorial e espontânea. Nada de trilhas sonoras épicas ou narrações dramáticas: só o som vivo de uma cidade sendo vivida.
A estética que mistura realidade e traço
O visual de despelote chama atenção à primeira vista. O jogo combina fotos reais e elementos estilizados desenhados à mão. Sebastián Valbuena, artista do projeto, já experimentava essa linguagem em animações 2D, mas nunca havia trabalhado com 3D. O desafio foi grande, mas o resultado impressiona. O contraste entre linhas em preto e branco e texturas ruidosas cria uma linguagem visual intuitiva e impactante.
Essa escolha estética também está alinhada com a proposta do jogo. Assim como os diálogos foram “coletados” de pessoas reais, os ambientes foram “capturados” com ferramentas como Scaniverse, Polycam e Blender. O mapa não é uma réplica fiel de um bairro de Quito, mas é construído a partir de fragmentos reais — fachadas, muros, calçadas — que dão veracidade à ambientação.
Ferramentas que deram forma ao sentimento
O desenvolvimento de despelote envolveu uma combinação de softwares técnicos e sensibilidade artística. O time utilizou:
- Unity para a construção da jogabilidade
- Fmod para a integração de áudio
- Scaniverse e Polycam para escaneamento 3D
- Blender para modelagem
- Ableton para a trilha sonora
- Photoshop para os detalhes gráficos
Esse arsenal tecnológico permitiu que o jogo fosse além da nostalgia e atingisse um realismo emocional — algo que poucos títulos conseguem capturar.
O som de Quito: memória auditiva e identidade
O áudio em despelote tem papel tão importante quanto o visual. Sons de pássaros, conversas aleatórias, ruídos urbanos foram captados por Ian Berman com o objetivo de reconstruir o som de Quito em 2001. Para Julián, essa camada sonora é o que torna a experiência universal.
Mesmo quem nunca pisou no Equador pode se sentir transportado ao ouvir esses sons. Afinal, certas paisagens sonoras evocam sentimentos que vão além da lógica — são sensações de pertencimento, lembrança, afeto.
Por que despelote merece sua atenção
Em um mar de jogos sobre grandes heróis, gráficos hiper-realistas e batalhas épicas, despelote surge como um sopro de originalidade. Ele não busca impressionar com espetáculo, mas emocionar com simplicidade. Fala de infância, de memória, de futebol como linguagem e da cidade como palco. E faz isso com leveza, inteligência e muita alma.
Se você acredita que os jogos podem contar histórias reais, humanas e cheias de nuances — despelote é uma experiência obrigatória.